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por Carlos Chaparro
Comunique-se, Fevereiro de 2004.... http://www.luispaixaomartins.net/arquivo03offdasfontes.htm
Antigamente, “off” era arma de repórter, nas artes de seduzir fontes e fazer alianças convenientes ao jornalismo. Hoje, o uso do “off” mudou de mão, faz parte do arsenal das fontes. Até que ponto a informação em “off”, controlado por fontes organizadas, pode ameaçar a confiabilidade da linguagem jornalística?
1. Tempos de “off”
Em um dos registros de sua coluna, Dora Kramer passou um pito em Lula, por causa daquela nota oficial por meio da qual, dois dias antes, a Presidência da República “desautorizava” as especulações sobre nomes e prazos para “uma possível reforma ministerial”. Dora Kramer se sentiu particularmente incomodada pela frase que dava fecho à nota oficial: “O Presidente considera (...) que tal noticiário especulativo não ajuda o país, na medida em que pode ter como efeito prejudicar o bom andamento de setores da administração pública”.
Por causa dessa frase, Dora Kramer achou que o Presidente interferia em um assunto no qual “não convém o Estado se imiscuir”: o trato da informação. Para a colunista, “o acesso à informação é um direito constitucional, não uma questão de gosto”.
Para além do exagero interpretativo (o de atribuir significado de indevida intromissão do Estado em questões de direitos constitucionais a uma nota oficial de alcance meramente tático), creio que Dora Kramer caiu no mesmo equívoco que levou os jornais a enfiar a carapuça, como se as críticas e as queixas presidenciais fossem dirigidas à imprensa.
Ao desautorizar o “noticiário especulativo”, a nota oficial apontava para as redações ou para as fontes ocultas que nutriam esse noticiário?
Se apontava para as redações, teve o sentido de “reprimenda ética” aos jornalistas. Mas se – e essa é a leitura que faço – teve como alvo as partes em conflito, escondidas nos bastidores não revelados do noticiário, a nota oficial cumpriu, e bem, a função de vigoroso lance de afirmação do “comando do jogo”, por parte de quem o deve comandar.
Ora, em momentos de divisão de espaços, benesses e poderes políticos, como este da reforma ministerial, faz parte do jogo a intensa utilização da informação em “off”, por parte dos protagonistas interessados. Pelo noticiário em “off”, sob a proteção do compromisso de anonimato, correm os recados táticos das partes
2. Do “off” à especulação
A despeito da nota oficial, o jogo do “off” prosseguiu, e de forma incrementada, alimentando a especulação política – que faz parte do jogo. Assim, na edição de 8 de janeiro, a Folha de S. Paulo, em texto de Kennedy Alencar, anunciou, sem ressalvas nem prudências condicionantes: “Planalto convida Eunício e Campos para o ministério”.
A notícia é precisa: “Com o aval do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ministro José Dirceu (Casa Civil) convidou anteontem o líder do PMDB Eunício de Oliveira (CE), para integrar o ministério sem definir a pasta e acertou ontem a substituição de Roberto Amaral (Ciência e Tecnologia) por Eduardo Campos (PE), líder do PSB na Câmara.”
Só faltou identificar a fonte da notícia, como aval de credibilidade. Ainda assim, é provável que tudo se confirme ou já esteja confirmado. E se assim for, confirmado estará também o “noticiário especulativo” tão criticado pela nota oficial da Presidência da República.
Mas o que me interessa salientar, aqui, é a força da informação em “off”, na construção do noticiário político, em momentos de crise ou tensão, como este da reforma ministerial.
Voltemos ao texto de Kennedy Alencar. Depois daquela introdução marcada pela precisão do relato, a reportagem (?) entra em um labirinto de hipóteses e predições, de intenso sabor especulativo, em torno das acomodações políticas que permitam a concessão de dois ministérios ao PMDB. Se verdadeiras, são revelações de uma intimidade que o governo certamente gostaria de manter preservada. Se falsas, comprometem a confiabilidade do jornalismo, de forma geral, e a do jornal e do repórter, de modo particular.
Como está em jogo um “capital político” de elevado valor de troca, é lógico supor que, atrás da trama especulativa elaborada por Kennedy Alencar, estejam fontes não independentes, mas altamente interessadas.
Quem são elas?
Kennedy Alencar as oculta sob expressão “a Folha apurou”, que faz parte dos códigos de linguagem do jornal, devidamente regulamentados no Manual de Redação. Assim está escrito no Manual, no verbete que define e regulamenta o uso do “off-the-record”, capítulo “Produção”:
“(...) A Folha trabalha com três tipos de informação ‘off-the-record’: a) ‘Off’ simples –Obtido pelo jornalista e não cruzado com outras fontes independentes. Se tiver relevância jornalística, pode ser publicado em coluna de bastidores, com indicação (...) de informação ainda não confirmada (...); b) ‘Off’ checado – Informação ‘off’ checada com o outro lado ou com pelo menos duas outras fontes independentes. Em texto noticioso, o ‘off’ checado deve aparecer sob a forma a Folha apurou que etc.(...); ‘Off’ total – Informação que, a pedido da fonte,não deve ser publicado de modo algum, mesmo que se mantenha o anonimato de quem passa a informação (...)
Eis aí o conceito e a norma que explicam a alta freqüência de matérias especulativas no jornalismo da Folha de S. Paulo, em especial na área política.
3. Problemas novos
No jornalismo de três, quatro décadas atrás, o “off” era ferramenta das mais importantes no trabalho dos grandes repórteres. Sou desse tempo. As fontes eram passivas, mais se escondiam do que se mostravam, preferiam mecanismos e estratagemas de não divulgar. Precisavam ser seduzidas. Saber seduzir fontes era uma habilidade de repórter. E o “off” fazia farte das artes de sedução. Por isso, repórter bom era o que tinha boas fontes. E fontes próprias, só dele.
Hoje, o uso do “off” faz parte do arsenal das fontes, que se profissionalizaram, tanto para a produção de acontecimentos noticiáveis quanto para a sua divulgação. Por isso e para isso, empregam e treinam jornalistas e profissionais de outras especializações. Muito mais do que nas redações, as áreas de comunicação nas organizações complexas são ambientes de multidisciplinaridade. Porque a notícia faz parte do agir estratégico e tático das instituições, que utilizam o jornalismo como espaço público dos conflitos em que se envolvem – e isto faz parte da fisionomia e da lógica das democracias contemporâneas, quer em seus formatos representativos, quer em suas manifestações participativas.
É um quadro irreversível, sem espaços nem razões para saudosismos. Mas que coloca problemas novos ao jornalismo, um dos quais o “caos informativo” produzido pela mistura de quantidade, fragmentação e repetitividade noticiosa da atualidade. Essa é uma questão complexa, por enquanto mal discutida.
Mas há problemas mais simples, que devem e podem ser questionados imediatamente. Um deles, a questão da informação em “off” e a sua utilização, nas práticas atuais. Pergunta-se: - Até que ponto a informação em “off”, hoje ferramenta das fontes organizadas, pode ameaçar a confiabilidade da linguagem jornalística? Que procedimentos de prudência deveriam ser ensinados nos cursos de jornalismo e adotados nas redações, em relação ao “off-the-record”?